dia da noite no céu sem lua

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tinha passarinhos amarelos
roupas coloridas no varal
uma grade rosa sujo
emoldurando tudo
e mais um pouco

e mais um pouco

de inspiração mangueirense
puído e mal-cuidado
o predinho espremia-se apertado
ao lado de construção gigantesca, abobalhada e catatônica

era sujo
era feio
e no topo vivia um corticinho

mas tomei amor por ele
e assaltou em mim a vontade de ali morar

no meio do musgo
da pintura descascada
do varal improvisado
dos passarinhos amarelos presos
no dia da noite no céu sem lua

7.ago.2009 ~ 15:29
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a concubina e a grilo

dedicatória para biti a. e rogério c. porthe nature of fairies
para ler ouvindo monochrome por yann tiersen

Coquete, passou mil horas na frente do espelho, experimentando disto e daquilo, empoando-se, perfumando-se, penteando-se. Suas mãos minúsculas e delicadas ajeitaram os cílios e ela, finalmente satisfeita com a imagem refletida, atravessou a janela e ganhou o mundo.

O vento a carregou ao sabor dos odores adocicados da primavera.

De repente, uma visão. Sentiu-se congelar por um instante. Ficou tão atordoada que voou magnetizada ao encontro daquela figura deslumbrante que parecia repleta de irresistível gravidade. Pousou-lhe no ombro e a mulher – que mais parecia boneca de porcelana de tão frágil – a acolheu entre suas mãozinhas diminutas.

Olhou demoradamente para a grilo, parecendo perceber e entender cada uma de suas pequenas idiossincrasias. Lembrou-se, também e imediatamente, que quando um grilo pousa sobre uma pessoa, é sinal de bons augúrios. Teve vontade de levá-lo para lhe fazer companhia.

E levando as palmas em concha para perto do rosto, sussurou: “gostarias de ir para casa comigo?”

***

A mulher era a concubina preferida do imperador e morava numa linda casa. Da janela de seu quarto, ela podia divisar o belo jardim com ameixeiras e um pequeno lago onde viviam carpas ornamentais.

A grilo passou a viver em uma gaiola ricamente ornada com folhas tenras e água fresca à sua disposição. A concubina instalou-a bem em frente à janela para que pudessem apreciar juntas a paisagem do jardim. Estava tão apaixonada pela concubina que a liberdade é que lhe parecia a prisão. Não conseguia suportar a idéia de viver longe do objeto de seu afeto, tendo ficado, pois, muito satisfeita de que ela a tivesse levado consigo.

a grilo e a janela

A concubina só ficava aflita porque nunca ouvia o seu canto. “Estás chateado comigo?” – ela não se cansava de perguntar.

A grilo, prevendo que a concubina poderia libertá-la num rompante de arrependimento e tendo consciência de sua curta vida, esperou que ela adormecesse e penetrou-lhe nos sonhos. Era uma habilidade que havia trazido consigo de sua vida pregressa de fada.

***

A bela dormia profundamente, os compridos fios de cabelo brincando com seu rosto de tez muito alva.

A grilo preparou-se com o seu vestido mais belo, aquele de um amarelo ouro de tecido levíssimo e flutuante e, caminhando por entre os sonhos da concubina, encontrou-a à beira da floresta, mexendo com um graveto as águas de um regato que corria chilreante.

“Quem és? Pareces-me perturbadoramente familiar, mas, por mais que eu me esforce em tentar lembrar, não consigo atinar de onde a conheço…”

“Decerto que me conheces, pois se não sou ninguém mais do que aquele a quem devotas os melhores pensamentos todos os dias? Aqui, uso minha face verdadeira, por isso não me reconheces de imediato.”

“Ah, o grilo! Mas…”

“Sim, sou eu. Porém, pensas que eu sou um grilo macho e por isso te afliges com a minha mudez. Ocorre que eu te amo e meu tempo é curto, por isso vim hoje para te dizer que sou uma grilo e para pedir-te que cases comigo, porque és tudo o que mais me importa em vida. Desculpe a minha urgência e indelicadeza, mas… como deves saber, nós, os grilos, vivemos apenas 100 dias e o meu tempo está-se esvaindo rapidamente.”

A concubina ficou bastante confusa por alguns instantes, mas logo recobrou o domínio sobre si. Sem titubear, ela ergueu a mãozinha delicada e afagou os cabelos da outra e olhando no profundo dos seus olhos, disse:

“É um vestido de noiva e um buquê de bodas, não é mesmo? Como adivinhastes que as flores de alcachofra, com seu violeta intenso, são as minhas preferidas?”

“Eu apenas senti.”

“Anabela, já que sabes tanto sobre mim, deves saber… que embora me provoques desejo e os melhores sentimentos, eu não consigo amar as mulheres como amo os homens. Está além de mim.”

“Sim, sei, mas tinha uma esperança de que eu fosse especial para ti.”

“Sim, tens razão. És especial como nunca nada foi em minha vida. E eu não tenho medo.”

“Nem da fúria do imperador? Não temes pela tua vida?”

“Nem da fúria do imperador. Porém… apesar de amar-te muito, receio que o amor que posso te dar não é aquele que esperas receber. E eu nunca serei capaz de dar-te tudo aquilo que mereces e desejas, por mais que eu me esforce. E vais sofrer. Sei, é egoísta de minha parte, mas isso… eu não suportaria…”

A concubina enxugou as lágrimas da mulher-grilo que corriam cheias de uma tristeza de fim de mundo, abraçou-a docemente e beijou-lhe os lábios.

As brumas encobriram a floresta.

Em seu quarto, a concubina acordou no meio da noite com uma lágrima na borda dos olhos, já sabendo que encontraria a gaiola e o coração vazios para sempre.


miki w. | 01.dez.2008 ~ 13:09
ilustração da autora
a grilo e a janela
03.dez.2008
lápis, aquarela e acrílica s/ papel
42,5 x 31,5 cm


tarde cítrica

dedicatória: para d.
para ler ouvindo: saudosismo de caetano veloso

De repente, parecia que a tarde ensolorada e quente tinha parado, congelado no tempo. Trazendo lembranças esquecidas, velhos guardados, talvez e até tudo o que tinha sido encerrado no passado. Ou quase.

Vê-lo, pôr os olhos em ti foi uma experiência estranha, desconcertante. E a tarde se arrastou, mas não foi um arrastado modorrento, pesado, mofento. Foi cítrico, quase alegre, abraçado numa nostalgia que não sabe parar.

Esses dias quentes de veranico que não se decidiam entre voltar ao inverno ou avançar no verão me deixavam atordoada e saudosista. Saudosita de cenas vividas no passado, emoções à flor da pele, alegrias irrestritas, responsabilidades adiadas… vento sol sorriso sorvete areia da praia banco da praça olhares de esguelha escondendo a felicidade…

E sonhos. Num tempo onde tudo poderia ser. Nada era impossível. Não havia amargura ou, se havia, era pouca, praticamente uma besteira, nada que angustiasse a alma profundamente. Nada que trouxesse dúvidas existenciais ou vontade de morrer. A vida era leve e, apesar de não ser rica, era cheia de pequenas felicidades.

Naquele momento congelado, pouco importava que, agora, tudo fosse tão diametralmente diferente. A vida era assim e nunca seríamos os mesmos para sempre. Então, pela brevidade de algumas horas, eu me deixei envolver naquela névoa de vapor fictício como se todos os medos e remorsos e dores pudessem ser superados para sempre e eu pudesse ser, novamente – ainda que talvez pela última vez – alguém com a alma e o coração leves.

A tarde se demorou a passar, mas era um pouco como o gosto de uma liquirizia que vem amargo e por fim fica adocicado na boca. Assim era aquela tarde. Límpida, febril e repleta de ternura.

tarde citrica

miki w. | 25.out.2008

ilustração da autora
tarde cítrica
23.nov.2008
lápis, tinta de caneta tinteiro, lápis de cor aquarelável, pastel à óleo, pó de arroz e sombra s/ papel
32,5 x 47,5 cm

o pavão e a caixa

para ler ouvindo: for today, i’m a boy por antony and the johnsons

O pavão povoava seus sonhos.

Mas, ela, assustada demais para deixar que ele vivesse, tratou de trancá-lo bem trancadinho numa caixa.

A caixa era linda: toda entalhada em madrepérola e adornada com delicados fios de prata. Um ou outro brilhinho de cristais aqui e ali. E a chave: uma minúscula e delicada chave com a qual ela fez “clic” girando lentamente duas vezes. Pronto, estava feito. Ela não deu chance para o arrependimento sequer pensar em aparecer. Escondeu a chave e foi viver a sua vida, certa de que estava fazendo a coisa certa.

A vida escorria caudalosa e veloz, como um rio enraivecido que tem pressa em chegar. Aonde, ela não sabe. Mas isso não faz com que a pressa diminua. Ou antes: sequer há tempo para questionamentos.

E assim passaram-se amores, amigos, o pai que sempre lhe fora tão querido, a sobrinha-afilhada que virou mocinha antes que ela pudesse lhe dedicar todo o amor que gostaria, oportunidades de mudar o rumo da sua vida… tudo isso passou sem que ela desse atenção.

Dizia a si mesma: “é que eu não tenho tempo. Não é que eu não queira me dedicar, mas sou bem-sucedida, não sou? Tenho um emprego de sonhos, ganho muito dinheiro, viajo pelo mundo todo. Tenho uma casa maravilhosa, um personal trainner que não deixa que meu corpo se acomode na preguiça, como só o que faz bem, conheço tudo sobre vinhos, sou bem-relacionada, todo mundo inveja a minha posição e tudo o que eu alcancei com o meu esforço. Sou bem-sucedida, não sou?”

Mas, vez ou outra, quando uma certa tristeza – que ela não sabia de onde vinha – aparecia, ela se lembrava da caixa. E, mais raramente ainda, arriscava-se a dar uma espiadela disfarçada para ela…

E mesmo trancafiado na caixa apertada e escura, o pavão faiscava levemente, tão lindo e suave que algumas fagulhas escapavam pelas frestras.

“Sou bem-sucedida, não sou?”

“Você acredita nisso de verdade?” – um dia, o amor da sua vida, aquele que ela deixou para trás junto com tudo o mais devolveu sua pergunta.

“Vá embora.” – ela disse.

Mas seu perfume de magnólia continuou atormentando seus sentidos. Sem poder suportar, ela correu até seu magnífico closet e, abraçou-se a um vestido de renda delicadíssimo – que não tinha nada a ver com o seu estilo de mulher-bem-sucedida-de-hoje – e chorou. Seus soluços cortaram a noite e eram tristes e sentidos como ela nunca ousou deixar.

“Sim, Frida, você tem razão. Eu não sou bem-sucedida. Sou uma mulher triste e amargurada que se engana todos os dias.”

Abrindo a frente de seu corset de seda, ela puxou a finíssima e longa corrente de ouro que pendia de seu pescoço com uma firmeza e decisão que ela nunca imaginou existirem dentro de si. O frágil e débil fio metálico arrebentou deixando cair uma minúscula chave.

Ela caminhou, uma vez mais, até seu closet e, girando uma parede falsa, retirou dali uma caixa toda entalhada em madrepérola e adornada com delicados fios de prata…

Vestiu o vestido de renda, calçou sandálias simples, sem salto nem glamour parecidas com as de um pescador, abraçou a caixa e, trancando a porta da frente, partiu para nunca mais voltar.

miki w. | 2.out.2008 [ilustração da autora]

se esta noite chovessem meteoros

ah! se esta noite chovessem meteoros e a minha casa ficasse com o chão forrado de estrelas… ah… acho que eu nem me importaria que você tivesse partido…

mas eu encosto o meu rosto na vidraça da janela e olho para a estrada na esperança de que você apareça na curva… mas, em vão…

por isso sonho com uma chuva de meteoros e eu a dançar no meio deles, enlouquecida e esquecida da vida…

mas, nada… minha angústia aumenta à medida que as horas passam e eu sinto que nem você aparecerá na curva do caminho e que nem choverão meteoros para forrar o meu chão de estrelas… choro, um choro pequeno e silencioso que ninguém quase percebe…

a noite vai alta e tudo é vazio… sinto-me apática e sem coragem para nada.

abro uma caixa onde há velhos guardados, fotos amareladas e cartas que, um dia, tiveram algum sentido… eu era feliz e me sentia serena. olho para aquele passado impresso na caixa e não sinto nada, só o mesmo vazio que impera.

se agora mesmo a morte adentrasse por aquela porta e me lançasse o seu punhal, eu não me oporia a ir, pois nada mais tem sentido.

mas, ah! se esta noite chovessem meteoros, talvez meu corpo se incendiasse e eu, incandescendo, poderia sair ao teu encontro e te envolver com a minha luz… mesmo que você nunca soubesse o que se passou… mesmo que, para você, tudo não passasse de um belo sonho…

ah! se esta noite chovessem meteoros…

marcela ribeiro 15.10.2001