a concubina e a grilo

dedicatória para biti a. e rogério c. porthe nature of fairies
para ler ouvindo monochrome por yann tiersen

Coquete, passou mil horas na frente do espelho, experimentando disto e daquilo, empoando-se, perfumando-se, penteando-se. Suas mãos minúsculas e delicadas ajeitaram os cílios e ela, finalmente satisfeita com a imagem refletida, atravessou a janela e ganhou o mundo.

O vento a carregou ao sabor dos odores adocicados da primavera.

De repente, uma visão. Sentiu-se congelar por um instante. Ficou tão atordoada que voou magnetizada ao encontro daquela figura deslumbrante que parecia repleta de irresistível gravidade. Pousou-lhe no ombro e a mulher – que mais parecia boneca de porcelana de tão frágil – a acolheu entre suas mãozinhas diminutas.

Olhou demoradamente para a grilo, parecendo perceber e entender cada uma de suas pequenas idiossincrasias. Lembrou-se, também e imediatamente, que quando um grilo pousa sobre uma pessoa, é sinal de bons augúrios. Teve vontade de levá-lo para lhe fazer companhia.

E levando as palmas em concha para perto do rosto, sussurou: “gostarias de ir para casa comigo?”

***

A mulher era a concubina preferida do imperador e morava numa linda casa. Da janela de seu quarto, ela podia divisar o belo jardim com ameixeiras e um pequeno lago onde viviam carpas ornamentais.

A grilo passou a viver em uma gaiola ricamente ornada com folhas tenras e água fresca à sua disposição. A concubina instalou-a bem em frente à janela para que pudessem apreciar juntas a paisagem do jardim. Estava tão apaixonada pela concubina que a liberdade é que lhe parecia a prisão. Não conseguia suportar a idéia de viver longe do objeto de seu afeto, tendo ficado, pois, muito satisfeita de que ela a tivesse levado consigo.

a grilo e a janela

A concubina só ficava aflita porque nunca ouvia o seu canto. “Estás chateado comigo?” – ela não se cansava de perguntar.

A grilo, prevendo que a concubina poderia libertá-la num rompante de arrependimento e tendo consciência de sua curta vida, esperou que ela adormecesse e penetrou-lhe nos sonhos. Era uma habilidade que havia trazido consigo de sua vida pregressa de fada.

***

A bela dormia profundamente, os compridos fios de cabelo brincando com seu rosto de tez muito alva.

A grilo preparou-se com o seu vestido mais belo, aquele de um amarelo ouro de tecido levíssimo e flutuante e, caminhando por entre os sonhos da concubina, encontrou-a à beira da floresta, mexendo com um graveto as águas de um regato que corria chilreante.

“Quem és? Pareces-me perturbadoramente familiar, mas, por mais que eu me esforce em tentar lembrar, não consigo atinar de onde a conheço…”

“Decerto que me conheces, pois se não sou ninguém mais do que aquele a quem devotas os melhores pensamentos todos os dias? Aqui, uso minha face verdadeira, por isso não me reconheces de imediato.”

“Ah, o grilo! Mas…”

“Sim, sou eu. Porém, pensas que eu sou um grilo macho e por isso te afliges com a minha mudez. Ocorre que eu te amo e meu tempo é curto, por isso vim hoje para te dizer que sou uma grilo e para pedir-te que cases comigo, porque és tudo o que mais me importa em vida. Desculpe a minha urgência e indelicadeza, mas… como deves saber, nós, os grilos, vivemos apenas 100 dias e o meu tempo está-se esvaindo rapidamente.”

A concubina ficou bastante confusa por alguns instantes, mas logo recobrou o domínio sobre si. Sem titubear, ela ergueu a mãozinha delicada e afagou os cabelos da outra e olhando no profundo dos seus olhos, disse:

“É um vestido de noiva e um buquê de bodas, não é mesmo? Como adivinhastes que as flores de alcachofra, com seu violeta intenso, são as minhas preferidas?”

“Eu apenas senti.”

“Anabela, já que sabes tanto sobre mim, deves saber… que embora me provoques desejo e os melhores sentimentos, eu não consigo amar as mulheres como amo os homens. Está além de mim.”

“Sim, sei, mas tinha uma esperança de que eu fosse especial para ti.”

“Sim, tens razão. És especial como nunca nada foi em minha vida. E eu não tenho medo.”

“Nem da fúria do imperador? Não temes pela tua vida?”

“Nem da fúria do imperador. Porém… apesar de amar-te muito, receio que o amor que posso te dar não é aquele que esperas receber. E eu nunca serei capaz de dar-te tudo aquilo que mereces e desejas, por mais que eu me esforce. E vais sofrer. Sei, é egoísta de minha parte, mas isso… eu não suportaria…”

A concubina enxugou as lágrimas da mulher-grilo que corriam cheias de uma tristeza de fim de mundo, abraçou-a docemente e beijou-lhe os lábios.

As brumas encobriram a floresta.

Em seu quarto, a concubina acordou no meio da noite com uma lágrima na borda dos olhos, já sabendo que encontraria a gaiola e o coração vazios para sempre.


miki w. | 01.dez.2008 ~ 13:09
ilustração da autora
a grilo e a janela
03.dez.2008
lápis, aquarela e acrílica s/ papel
42,5 x 31,5 cm


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